quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

"Dantes-deu-nasce"

Diz que aconteceu lá pelos arredores do agreste da Bahia em mil novecentos e alguma 
coisa. Era uma fazenda com sei lá quantos hectares, mas era grande; isso era sim “sinhô”! 
Criavam, lá, cabras, “cabritas”, bodes que nossa senhora; só você vendo para crer o tanto - meu pai viu e
contava: tinha uns bodes cujo o saco praticamente arrastava pelo chão; e os jagunços da fazenda? Uns 
“trabucos” de homens que andavam pra lá e pra cá, espingarda no ombro, chapéus de palha com aba longa
redonda, sabe, para se proteger do sol que queimava sem pena; vistoriavam os terrenos, a porteira, as 
cabras os pastores e o pastoreiro. Esses capangas trabalhavam muito e mal ganhavam: uma merrequinha
que quase não dava para o feijão, a farinha, a macaxeira, o tabaco, a cachaça e a diversão no bordel da 
cafetina dona Dasdô Coló.
Era propriedade do “coroné” Teotonio Velado homem mais poderoso lá dos arredores: 
mandava e desmandava em tudo na Taberabana cidadezinha próxima à fazenda, se é que dava pra chamar
aquele fim de mundo de cidade: uma tranqueira de lugar esquecido pelo mundo, parado no tempo; 
contava-se que nem fantasma queria ficar por lá de tão parado: era uma pasmaceira só!
Os únicos acontecimentos por lá era a procissão anual da capelinha em homenagem à santa padroeira da 
cidade e a festa junina no mês de Julho; a primeira um ato solene e religioso e a segunda uma festa até que 
divertida para um lugar onde Judas perdeu o cabelo. Mas,a verdadeira atração, ao menos para os rapazes 
jovens e solteiros ( e muitos velhos e casados, também) era a casa da dona Dasdô Coló: lá dançava-se, 
bebia-se e depois vadiava com as pombinhas que era como chamavam as garotas da casa.
As festas e as coisas da igreja: a missa, a limpeza, a arrumação, não eram organizadas e lideradas pelo 
padre local; não mesmo! Era dona Marialva Velado quem tratava tudo; na verdade ela mandava e desmandava.
e quem diria não? 
Era a mulher do coroné Teotonio; diacho de mulher ruim que só o capeta, diziam! Por fora recatada, vestidos
longos, coque apertado, terço no pescoço; papa hóstia; sempre um lenço na cabeça mas meu pai contava 
que a bicha era má; brava!
Diacho de mulher ruim; diz que isso era mesmo!
  Diz que ela, dona Marialva, estava na sala lá da casa grande, na frente do altar rigorosamente limpo,
cheio de santos, imagens que mandou trazer lá da capital da Bahia; fazia suas costumeiras orações, 
ajoelhada, manto azul marinho sobre a cabeça; a sala toda com cheiro de cêra de vela quando teve uma 
surpresa,chéchéché…
A filha chegou em casa de conversê com umas meninas, eram as filhas dos jagunços e cozinheira, 
empregadas, sei lá eu... Marcina era o nome da filha: menina nova, uns 15 anos; na companhia de outras 
três!
Marcina era um poço de candura e não era pra menos: filha única do poderoso coroné com a beata 
fervorosa, foi criada praticamente presa dentro de casa: saia apenas aos domingos para ir à missa e 
sempre com um véu lhe cobrindo o rosto; com véu frequentava o ato litúrgico e, acredite em mim, não 
era vista por ninguém da cidade lá dentro da igreja  pois sua mãe, usando da sua forte influência, 
conseguia um lugar extremamente discreto, quase escondido, na paróquia; a diaba da mulher também 
usava um véu que lhe cobria metade da face. Quando a missa terminava, saía pelos fundos rapidamente 
com a filha, ambas de véu, subiam na carroça e disparavam para a casa grande de onde a menina só 
           saíria no próximo domingo.
Pode achar que é mentira minha, mas era assim mesmo que o meu pai contava, sim sinhô: diz que a 
mulher do coroné quando engravidou fez uma promessa para Deus: se viesse uma menina iria usar 
véu e só o tiraria no altar diante do padre e do noivo já feito marido; se não casasse, partiria para um 
convento em Aracaju: seria freira e ninguém, além das irmãs religiosas, veria o seu rosto. Não me 
perguntem vocês o motivo dessa promessa desenxabida mas, como dizia minha finada mainha: a 
concha é que sabe o calor da panela! 
Quando a beata, ali ajoelhada rezando, viu chegar a filha na sala, sem véu e com três filhas de 
  sabe-se-lá-quem, não é de se espantar que foi um choque do tamanho do mundo: deu um berro 
tão alto que lá em Esplanada se ouviu.
- Vai cair um raio divino que vai fulminar essa sala! Você está em pecado… vão embora suas quengas
antes que eu mande raspar a cabeça e açoitar cada uma… eu mando botar fogo na casa dos seus 
pais com todos dentro...
Meu pai trabalhava por lá na fazenda ”d’antes-deu-nasce”; era jagunço! “nunco” nem botou os 
olhos na mocinha; ela não saia de casa; não saia mesmo! Então como aconteceu aquilo? Diz que ela,
Marcina, que com essa promessa dos diabos devia viver de calundu, da janela do seu “quarto-cativeiro”,
viu as três brincando e foi fazendo amizade dia após dia, às escondidas, em segredo, até que descuidou
e deu no que deu; e como macaco velho não mete a mão em cumbuca, como dizia minha mãe que 
Deus a guarde, as meninas foram embora corridas enquanto a Marcina foi chorando, arrasada, 
desesperada, para o quarto e a bruxa véia se escondia debaixo da mesa com medo de raio! 
O coroné chegou naquela noite sei lá de onde. Era alto o homem, troncudo, corpulento; rico mas burro; 
burro que nem porta e perigoso o patife: tudo queria resolver ou com tiro ou mandando capar o 
cabra e isso é verdade; é verdade mesmo!
- Ooooxi, que grito que tu deu muié qui os cabra ai tava tudo falando? “Abilolo” foi?  - perguntou com 
aquela vozeria grossa e a mão já segurando o cano na arma da cintura.
A megera, ainda exasperada, narrou-lhe o mais dramaticamente possível, o ocorrido ao que ele fez 
pouco caso
- Oooxi e tu precisa gritar desse jeito? Parece que é doida! Se fosse algum jagunço se metendo a 
besta com a filha do coroné eu mandava capar o cabra; mas três meninas vão fazer o quê?
- Vão fazer o que homi? Três meninas nada, homi; eram quengas que eu sei! Obra de satanás para 
destruir minha promessa sagrada homi! sorte de nossa filha ter uma mãe como eu para assegurar 
sua moral e sua alma; vou fazer alguma penitência com essa menina para pagar o ocorrido e tentar 
evitar a ira de Deus!
- É, vá, vá... eu vou sair; vou dar uma espairecida muié!
- Outra vez, Teotonio? Mas você acabou de chegar homi; não vai nem jantar?
- Não to com fome muié, perdí! E vou é na casa do padre Horácio buscar conseio!
- Então vá; se vai na casa do padre então vá mesmo que depois de hoje vamos precisar de toda 
ajuda pra ficar bem com Deus outra vez!
- E que é de Marcina?
- Está em seu quarto; desde a hora que chegou aqui em pecado na companhia de quengas se trancou;
não saiu nem para comer, nem para beber: eu acho bom! Com certeza está espiando o pecado grave 
que cometeu! - acendeu mais uma vela, jogou o lenço preto sobre o coque apertado e disse severa:
- E tu homi, trate de dar uma bronca nesses jagunços da fazenda: bem sei que esses capadócios ao 
invés de vigiar ficam dormindo, ainda mais essa hora da noite; qualquer dia entra bandido e nos leva tudo!
- oooxi muié e quem se atreve a invadir casa de coroné? Mando dar tiro e depois capo o cabra! - disse. 
E saiu pra noite; depois ela se ajoelhou e rezou agradecendo o marido santo.
Coroné Teotonio Velado: diziam que era mais burro que porta, o cabra!
    A casa da dona Dasdô Coló era ponto de encontro certo dos poetas de bar; os beberrões da cidade
iam todos para lá; os jagunços, os peões, os pastores, os vagabundos... lá dava pra jogar,também, pois tinha
uma mesa de carteado; havia um toca discos ainda de manivela que, diziam as corajosas línguas num
sussurro, Dona Dasdô ganhou do coroné; a cafetina colocava para girar discos alegres da época como 
do Trio Marayá e logo estavam todos dançando pela sala sob o som de “Bamboleio de Yayá”; às vezes 
chegava o Quincas e o Bucho, dois malandros vagabundos que animavam o lugar com música; 
cada um com sua viola, sabiam dedilhar muitos sucessos mas preferiam mesmo as canções do 
Clodoaldo Brito, Codó, e toma bebedeira e vadiagem com as pombinhas sob as luzes amareladas dos
lampiões de querosene e o espesso fumo dos cachimbos ou cigarros de palha e Sambita ao fundo.
Naquela noite na qual o coroné disse que ia sair para ver o padre; qual nada: foi direto pra casa de 
dona Dasdô! Se a dona mulher dele soubesse… haaa se ela imaginasse que o marido frequentava aquela
casa um raio ia cair, sim, e fulminar o coroné; mas dona Marialva é quem invocaria o raio divino; 
ela invocaria mesmo!!
    No bordel as pombinhas, assim que viram o coroné chegar, trataram todas de ir lhe beijar a face e enche-lo 
de mimos - além das claras ordens da dona Coló, havia, também, o fato de que todas tinham o sonho de se 
tornarem teúda e manteúda do poderoso. Mas a Cafetina tratou de tomar a frente das meninas e chamar o 
coroné de canto contando-lhe em segredo:
- Coroné, não tinha melhor noite pro sinhô vir ao meu humilde estabelecimento! Imagina o sinhô que hoje 
mesmo chegou pombinha nova! Nova novinha mesmo;verdinha, verdinha! veio de fora; “nunco” nem foi 
vista na região! Claro que o sinhô é quem merece “estréa”!
   E como a melhor espiga é para o pior porco, dizia assim minha santa mãe, diz que o coroné ficou 
muito contente e quis logo ir para o quarto encontrar a moçoila.
Chegou lá, deitou na cama; tirou as botas, o chapéu; tirou a camisa; tirou a calça; tirou a ceroula e a moça
entrou; alí, deitado sobre a cama, aquela massa bruta de homem peludo teve um principio de infarto quando
a nova pombinha entrou no quarto; assim contava meu pai e contava mesmo: o coroné, diz que quase 
colocou o coração para fora da boca, o bicho subiu até a garganta ; não saiu boca afora, é verdade, porém, 
quando foi engolir o coração, o coroné quase morre engasgado - ficou da cor de pimenta dedo-de-moça 
madura, os olhos esbugalhados, uma suadeira tremenda: 
a nova pombinha alí no quarto era Marcina, sua filha!






2 comentários:

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O rapaz subia a ladeira , pela calçada esquerda, na frente. A senhora subia a ladeira, pela calçada esquerda, atrás dele. Eu...