O
garoto era só mais um garoto entre tantos outros ali na entrada da
pré-escola onde a criançada aguardava, em meio a um turbilhão de
vozes; rebojo de risadas que pairavam no ar, alarido desenfreado, o
horário no qual o velho zelador viria abrir o portão; nesse
aguardado momento, por alguns segundos, pairava um mutismo quase que
religioso; mas durava pouco: mal o umbral estava aberto, via-se
dezenas e dezenas de pezinhos cruzando, correndo, saltitando,
cabriolando, ultrapassando e deixando o limiar para trás.
Era
uma alegria…
Então,
porque aquele garoto que era só mais um garoto entre tantos outros
ali não compartilhava de todo aquele júbilo?
Ele
subia o caminho de ladrilhos quadrados preto e branco, que ligavam o
portão ao prédio escolar, imerso no seio dos seus pensamentos
inocentes e vazio daquele assanhamento, excitação que imperava a
sua volta; mirava os ladrilhos quadrados preto e branco e, em seu
íntimo de criança, indagava se havia, entre eles (as cores dos
ladrilhos) qualquer tipo de diferenciação.
Será?
Pouco
depois, o garoto era só mais um garoto entre tantos outros ali
sentados em suas cadeiras apoiando-se nas carteiras; mas, se assim
o era, porque ela, a professorinha, não o assim tratava?
Ela
possuía um par de olhos azuis ternos quando brincava com as outras
crianças; não obstante, quando expectava aquele garoto desaparecia
toda a ternura e a brandura e aqueles olhos partiam do convexo para o
côncavo; tornavam-se frios, gélidos; pesados e hostis qual uma
metralhadora pronta para disparar balas de ódio — e seu rosto, de
tez branca, alva como a neve, jamais, escrevi jamais, lhe dispensara
um sorriso, amarelo que fosse, longe dos adultos, durante as aulas.
Com
apenas sete anos de idade, o garoto, que era só mais um garoto entre
tantos outros ali, não brincava nem conversava; ele pensava e
procurava no seio dos seus pensamentos inocentes, qual o motivo para
ela não gostar dele: não era o mais bagunceiro — nesse quesito,
estava bem aquém daquele menino cheio de cachinhos loiros, e ela
gostava daquele menino! — Nunca chorara em classe e isso era feito
quase todos os dias pelo guri branco salpicado com sardas vermelhas
(e mesmo com choro ela gostava deste, também).
Então,
porque ela simplesmente parecia odiá-lo? O que teria ele feito?
Por
falar em chorar, houvera sim dois dias; um no qual quase chorara;
porém não o fizera, e outro no qual chorara; e o garoto, que era só
mais um garoto entre tantos outros ali, lembrou-se do dia no qual
todas as crianças da sala corriam brincando, serelepe, sobre os
ladrilhos quadrados preto e branco, e ele, num acidente, torceu o pé
e caiu sobre os ladrilhos; a professora que estava próxima,
monitorando a turma, veio até ele e, naquele momento de fragilidade
pura, no seio de seus pensamentos inocentes, ele acreditou, ou talvez
não acreditara, mas amealhou um fio de esperança (da espessura de
um fio de cabelo) de que aquela mulher de tez branca e olhos azuis
poderia,
num
ato de compaixão, olhar para ele ao menos naquela vez sem os olhos
pesados e duros, sem a metralhadora de ódio e, quem sabe,
compartilhar com ele um pouco da ternura que tinha com as outras
crianças.
Ali,
ainda caído sobre os ladrilhos quadrados preto e branco, o garoto,
que era só mais um garoto entre tantos outros que ali já caíram,
logo teve seu fio rompido e os pensamentos esperançosos dissipados:
o olhar, o costumeiro olhar de ódio, de raiva, estava lá,
mas, agora, vinha acompanhado com algo que ele, com apenas sete anos
de idade e ainda um inocente no seio dos seus pensamentos inocentes,
não saberia que o dicionário de português classificaria com a
palavra “ironia”; e, enfim, ela lhe sorrira; não era o mesmo
sorriso que entregava para aquele menino cheio de cachinhos loiros ou
para o guri branco salpicado com sardas vermelhas; não era nem mesmo
um sorriso amarelo; era riso de deboche; deboche puro!
Certificando-se
que apenas o garoto pudesse ouvir arrancando-o de vez do seio dos
seus pensamentos inocentes, a professorinha disse:
— Está
vendo? Até um macaco pode cair do galho!
A
partir dali aquele era o seu “apelido” usado pela professorinha
quando não havia adultos ou mesmo crianças próximas; ele ainda
tentou comprar o carinho daquela mulher que, por algum motivo, o
odiava; mas, o dia em que correu para o banheiro carregando pó de
giz branco e jogou em seu próprio rosto, na esperança de ser
querido ou ao menos não odiado, se converteu em um palco de zombaria
e deboches e, dessa vez sim, as lágrimas vieram lavando o pó de giz
na face negra — correram os pingos fazendo um caminho salgado em
seu rostinho, para deleite da professorinha:
— Você
nasceu preto!, aceite isso macaquinho.
Doravante,
o garoto já não se sentia mais só um garoto entre tantos outros
garotos que ali haviam e, desde então, todos os dias, na hora da
entrada, ele refugiava-se no seio dos seus pensamentos, outrora
inocentes, vazio daquele assanhamento, excitação que imperava a sua
volta e passou a mirar, triste, aqueles ladrilhos quadrados preto e
branco.
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