domingo, 3 de dezembro de 2017

Ladrilhos quadrados preto e branco


O garoto era só mais um garoto entre tantos outros ali na entrada da pré-escola onde a criançada aguardava, em meio a um turbilhão de vozes; rebojo de risadas que pairavam no ar, alarido desenfreado, o horário no qual o velho zelador viria abrir o portão; nesse aguardado momento, por alguns segundos, pairava um mutismo quase que religioso; mas durava pouco: mal o umbral estava aberto, via-se dezenas e dezenas de pezinhos cruzando, correndo, saltitando, cabriolando, ultrapassando e deixando o limiar para trás.
Era uma alegria…
Então, porque aquele garoto que era só mais um garoto entre tantos outros ali não compartilhava de todo aquele júbilo?
Ele subia o caminho de ladrilhos quadrados preto e branco, que ligavam o portão ao prédio escolar, imerso no seio dos seus pensamentos inocentes e vazio daquele assanhamento, excitação que imperava a sua volta; mirava os ladrilhos quadrados preto e branco e, em seu íntimo de criança, indagava se havia, entre eles (as cores dos ladrilhos) qualquer tipo de diferenciação.
Será?
Pouco depois, o garoto era só mais um garoto entre tantos outros ali sentados em suas cadeiras apoiando-se nas carteiras; mas, se assim o era, porque ela, a professorinha, não o assim tratava?
Ela possuía um par de olhos azuis ternos quando brincava com as outras crianças; não obstante, quando expectava aquele garoto desaparecia toda a ternura e a brandura e aqueles olhos partiam do convexo para o côncavo; tornavam-se frios, gélidos; pesados e hostis qual uma metralhadora pronta para disparar balas de ódio — e seu rosto, de tez branca, alva como a neve, jamais, escrevi jamais, lhe dispensara um sorriso, amarelo que fosse, longe dos adultos, durante as aulas.
Com apenas sete anos de idade, o garoto, que era só mais um garoto entre tantos outros ali, não brincava nem conversava; ele pensava e procurava no seio dos seus pensamentos inocentes, qual o motivo para ela não gostar dele: não era o mais bagunceiro — nesse quesito, estava bem aquém daquele menino cheio de cachinhos loiros, e ela gostava daquele menino! — Nunca chorara em classe e isso era feito quase todos os dias pelo guri branco salpicado com sardas vermelhas (e mesmo com choro ela gostava deste, também).
Então, porque ela simplesmente parecia odiá-lo? O que teria ele feito?
Por falar em chorar, houvera sim dois dias; um no qual quase chorara; porém não o fizera, e outro no qual chorara; e o garoto, que era só mais um garoto entre tantos outros ali, lembrou-se do dia no qual todas as crianças da sala corriam brincando, serelepe, sobre os ladrilhos quadrados preto e branco, e ele, num acidente, torceu o pé e caiu sobre os ladrilhos; a professora que estava próxima, monitorando a turma, veio até ele e, naquele momento de fragilidade pura, no seio de seus pensamentos inocentes, ele acreditou, ou talvez não acreditara, mas amealhou um fio de esperança (da espessura de um fio de cabelo) de que aquela mulher de tez branca e olhos azuis poderia,
num ato de compaixão, olhar para ele ao menos naquela vez sem os olhos pesados e duros, sem a metralhadora de ódio e, quem sabe, compartilhar com ele um pouco da ternura que tinha com as outras crianças.
Ali, ainda caído sobre os ladrilhos quadrados preto e branco, o garoto, que era só mais um garoto entre tantos outros que ali já caíram, logo teve seu fio rompido e os pensamentos esperançosos dissipados: o olhar, o costumeiro olhar de ódio, de raiva, estava lá, mas, agora, vinha acompanhado com algo que ele, com apenas sete anos de idade e ainda um inocente no seio dos seus pensamentos inocentes, não saberia que o dicionário de português classificaria com a palavra “ironia”; e, enfim, ela lhe sorrira; não era o mesmo sorriso que entregava para aquele menino cheio de cachinhos loiros ou para o guri branco salpicado com sardas vermelhas; não era nem mesmo um sorriso amarelo; era riso de deboche; deboche puro!
Certificando-se que apenas o garoto pudesse ouvir arrancando-o de vez do seio dos seus pensamentos inocentes, a professorinha disse:
Está vendo? Até um macaco pode cair do galho!
A partir dali aquele era o seu “apelido” usado pela professorinha quando não havia adultos ou mesmo crianças próximas; ele ainda tentou comprar o carinho daquela mulher que, por algum motivo, o odiava; mas, o dia em que correu para o banheiro carregando pó de giz branco e jogou em seu próprio rosto, na esperança de ser querido ou ao menos não odiado, se converteu em um palco de zombaria e deboches e, dessa vez sim, as lágrimas vieram lavando o pó de giz na face negra — correram os pingos fazendo um caminho salgado em seu rostinho, para deleite da professorinha:
Você nasceu preto!, aceite isso macaquinho.
Doravante, o garoto já não se sentia mais só um garoto entre tantos outros garotos que ali haviam e, desde então, todos os dias, na hora da entrada, ele refugiava-se no seio dos seus pensamentos, outrora inocentes, vazio daquele assanhamento, excitação que imperava a sua volta e passou a mirar, triste, aqueles ladrilhos quadrados preto e branco.



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