quinta-feira, 5 de abril de 2018

Mas você também jogou!





O rapaz subia a ladeira, pela calçada esquerda, na frente.
A senhora subia a ladeira, pela calçada esquerda, atrás dele.
Eu subia a ladeira, na mesma calçada, atrás de ambos.
Ele usava roupa social e mochila nas costas, tinha o passo apressado.
Ela usava roupas miseráveis, chapéu amarelo de político e carregava um cabo de vassoura qual ao cajado do velho Zé Esteves do romance de Tieta do Agreste.
Ele estava com pressa para o trabalho, faculdade, ou compromisso.
Ela ia catar papelão e latinhas nas lixeiras ao longo da rua.
Ele olhou, enojado, para um monte de lixo logo à frente, na calçada.
Que nojo, com certeza é essa gente que revira lixeira e joga lixo na rua!” — disse alto de modo que ela pudesse ouvir. Ouviu. — Isso é uma droga. — continuou, limpando o nariz com um lenço de papel. — Gente porca. — e jogou seu lenço sujo na pilha de lixo, no chão.
Tem razão… — disse a mulher — … mas você também jogou! — disse de si para si pois dessa feita o rapaz apressado, muito enojado e revoltado, já estava bem adiante para escutar.

sábado, 17 de março de 2018

Mãããe vai começar a novela!


Assim, da forma que o título diz, o menino gritava do quarto para a cozinha todos os dias quando o relógio, com retrato de paisagem de pescador (dependurado na parede do corredor), batia oito da noite; E lá vinha, da cozinha, dona Maria, sua “avó-mãe”.
Ainda que fosse uma senhora solteira, no quarto havia uma cama de casal de madeira maciça e paraense; nela sentava-se a avó e o menino deitava a cabeça no seu colo para ambos apreciarem as fantasias das novelas; ora a história de uma cidade nordestina impregnada de realismo mágico com vilãs cômicas que, uma hora outra, sairiam voando (as preferidas do menino), ora o cenário urbano com assassinos misteriosos e prédios que explodiam — uma verdadeira fábrica de fantasia que tirava o garoto do quarto e o levava “para lá de Marrakech”
Venha ver essa nova abertura, como é bonita! — Chamava a avó dona Maria Augustinha e ele ia, ia e se deslumbrava com o que via: uma mulher que corria ininterruptamente por uma paisagem rural (como se almejasse ir correndo do Norte ao Sul) e, em seu caminho, do chão e do ar, brotavam obstáculos inumanos mas que ela trespassava cada um sem se abalar valendo-se, para tanto, de poderes mutantes qual um personagem do desenho “X-men” ou um dos integrantes do “Quarteto fantástico” produtos da mente de um velho gênio chamado Stan Lee. 
Poderes esses (da mulher na abertura) que a permitia transfigurar-se de sua forma física para elementos da natureza — se no seu caminho aparecesse muitas barras de cela de cadeia, vindo do leste e oeste voando deitadas na horizontal até encontrar-se formando, assim, a porta de uma cela intransponível para o corpo humano com seu torso e membros, a mulher vestida de vermelho virava o próprio fogo e ultrapassava-as.
Em seguida, surgia, caindo do céu, barreiras gigantescas que se prendiam no chão: grandes placas metálicas de forma retangular na vertical — ela tornava-se água e as deixava para trás.
Na estrada viria, por último, um labirinto de barras de ferro qual aqueles que as crianças brincam nos parquinhos, mas com as proporções gigantescas de Gulliver perante os cidadãos da ilha de Lilliput — A indomada era, para combater e transcendê-las, dezenas de pedras que voavam lembrando as “pedras que cantam” profetizadas por Fagner. Tudo embalado pelo ritmo empolgante de um Maracatu pernambucano executado por Sérgio Mendes, rico com todas as suas alfaias, os taróis, os ganzás e os agogôs.
Lá, nas novelas, o menino viu Eva Wilma invocar o raio; viu Osmar Prado partindo pra lua; viu Aracy dando alma à Filomena Ferreto, seu papel antológico que mais tarde ele compararia a Don Corleone de “The Godfather”; viu a trama de realismo fantástico que retratava um possível “fim do mundo” sem alusão ao último livro das escrituras cristãs, redigido pelo filho de Zebedeu, assumindo (a novela) somente o compromisso de entreter — folhetim esse que apresentou-lhe o universo de Dias Gomes, preparando-o para no futuro, na adolescência, assistir à obra prima: “O pagador de promessas” desse mesmo autor.
O menino viu as aventuras e desventuras de um rei do gado;
Ouviu que “Há um brilho de faca onde o amor vier”;
Conheceu o drama e a saga das mães da Sé, paradas entre a catedral e o marco zero paulista, carregando as fotos dos seus filhos desaparecidos;
O milagre hilariante do mudo que passa a falar ao se deparar com Mula sem cabeça;
A batalha árdua dos sem terras e compreendeu que “É duro tanto ter que caminhar e dar muito mais do que receber” por Peninha na voz de Zé Ramalho.
Mas, se alguém, hoje, indagar ao menino acerca de sua melhor lembrança de uma infância mágica, ele responderá, sem pestanejar, que era o colo de Dona Maria Augustinha cedido para repousar a cabeça que um dia trabalharia produzindo histórias para fazer todos sonharem do jeito que ele sonhou.
Por volta dos dez anos, saboreando as Reinações de Narizinho, ele questionou quando leu que Dona Benta era a mais doce das vovós; só depois ele compreendeu que a avó mais doce é a “nossa”: a de Narizinho, a dele, a sua…

sexta-feira, 9 de março de 2018

A caminho do Pará

         O ônibus de viagem seguia pela estrada. Partira de uma rodoviária em São Paulo, capital, e tinha por destino a cidade de Belém do Pará no norte do Brasil. Viajava o menino, em torno dos seis ou sete anos, e sua avó dona Maria a qual ele chamava, carinhosamente, Mamãe Maria, essa também conhecida, por amigos e parentes, como Dona Augustinha.

Dona Augustinha contara ao menino que a viagem levaria cerca de três dias; três dias de pura estrada e estavam, os dois, felizes pois conseguiram as duas primeiras poltronas da fileira da direita de modo que eles poderiam, além de apreciar a vista da tradicional “janelinha”, também, vislumbrar toda a estrada à frente junto com o motorista.

         À medida que o primeiro dia passou e chegou o segundo, sempre rumo ao Norte brasileiro, a temperatura da estrada foi aumentando e, naquele tempo de mil novecentos e noventa e alguma coisa não havia ar-condicionado no ônibus de viagem mas esse fato não incomodou o menino nem sua avó — abriam a janela na busca por se refrescarem assim como todos os outros passageiros: brasileiros partindo, brasileiros regressando; no caso do menino e sua mamãe Maria, estavam indo visitar parentes; tomar muito açaí com farinha de Tapioca, acompanhado de peixe assado na brasa; depois creme de Cupuaçu ou o suco da polpa dessa fruta, comer pupunhas cozidas, Tacacá na cuia, camarão, vatapá, maniçoba da folha da maniva (que precisava ser cozida cerca de sete dias para essa iguaria) e muitas outras delícias “lá do meu lugar, quente lugar.”

Durante a viagem, Dona Augustinha fez logo amizade com duas senhoras que viajavam juntas no par de poltronas da fileira da esquerda, e conversavam.

         Foi na noite do segundo dia que ocorreu: o ônibus fez a sua parada num restaurante para o jantar. Todos os passageiros desceram para esticar as pernas, espreguiçar, saciar a fome. Findo o tempo estipulado para a parada, todos os passageiros retornaram para o ônibus, incluindo o menino e sua avó.

Embarcaram ambos e sentaram nas poltronas; a avó, obviamente, permitiu que o menino viajasse na poltrona ao lado da “janelinha”.

De súbito, disse-lhe dona Augustinha:

Espera aqui; eu esqueci de pegar água para nós… vou pegar, também, dois sacos de pipoca! — E desceu do ônibus.

O motorista embarcou e tomou sua poltrona, exasperando o menino que levantou-se pedindo:

Por favor, espere a minha avó voltar: ela desceu!

O motorista achou graça na agonia do menino e decidiu fazer um gracejo:

Já terminou o tempo, temos que ir embora; vou deixar sua avó…

O menino ficou desesperado.

Não, por favor, ela já vem! — pôs se na escadinha entre o motorista e a porta.

Desculpe, mas não podemos mais esperar! — pilheriou o rapaz.

O menino, já tomado pelo medo e pânico de partirem sem sua mamãe Maria, começou a descer e subir a escada, ia até a porta tentar gritar por sua avó mas não a via, retornava até o motorista já implorando para esse aguardar, descia outra vez, o choro já querendo subir por sua garganta quando… dona Augustinha chegou trazendo água e pipoca.

Não tenho palavras possíveis, hoje, para descrever o alívio do menino.

As duas senhoras que ocupavam as primeiras poltronas da fileira da esquerda, e que a tudo testemunharam, também sorrindo com aquele desespero inocente da criança, depois narraram todo o caso para sua avó que durante muitos e muitos anos ainda recordaria aquele episódio marcante.

O menino, hoje um homem, o recorda como um dos momentos mais emblemáticos de sua vida.

         E o Ônibus seguiu pelas estradas do Brasil, para aquela que seria uma das férias mais felizes e marcantes para ambos…


quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

"Dantes-deu-nasce"

Diz que aconteceu lá pelos arredores do agreste da Bahia em mil novecentos e alguma 
coisa. Era uma fazenda com sei lá quantos hectares, mas era grande; isso era sim “sinhô”! 
Criavam, lá, cabras, “cabritas”, bodes que nossa senhora; só você vendo para crer o tanto - meu pai viu e
contava: tinha uns bodes cujo o saco praticamente arrastava pelo chão; e os jagunços da fazenda? Uns 
“trabucos” de homens que andavam pra lá e pra cá, espingarda no ombro, chapéus de palha com aba longa
redonda, sabe, para se proteger do sol que queimava sem pena; vistoriavam os terrenos, a porteira, as 
cabras os pastores e o pastoreiro. Esses capangas trabalhavam muito e mal ganhavam: uma merrequinha
que quase não dava para o feijão, a farinha, a macaxeira, o tabaco, a cachaça e a diversão no bordel da 
cafetina dona Dasdô Coló.
Era propriedade do “coroné” Teotonio Velado homem mais poderoso lá dos arredores: 
mandava e desmandava em tudo na Taberabana cidadezinha próxima à fazenda, se é que dava pra chamar
aquele fim de mundo de cidade: uma tranqueira de lugar esquecido pelo mundo, parado no tempo; 
contava-se que nem fantasma queria ficar por lá de tão parado: era uma pasmaceira só!
Os únicos acontecimentos por lá era a procissão anual da capelinha em homenagem à santa padroeira da 
cidade e a festa junina no mês de Julho; a primeira um ato solene e religioso e a segunda uma festa até que 
divertida para um lugar onde Judas perdeu o cabelo. Mas,a verdadeira atração, ao menos para os rapazes 
jovens e solteiros ( e muitos velhos e casados, também) era a casa da dona Dasdô Coló: lá dançava-se, 
bebia-se e depois vadiava com as pombinhas que era como chamavam as garotas da casa.
As festas e as coisas da igreja: a missa, a limpeza, a arrumação, não eram organizadas e lideradas pelo 
padre local; não mesmo! Era dona Marialva Velado quem tratava tudo; na verdade ela mandava e desmandava.
e quem diria não? 
Era a mulher do coroné Teotonio; diacho de mulher ruim que só o capeta, diziam! Por fora recatada, vestidos
longos, coque apertado, terço no pescoço; papa hóstia; sempre um lenço na cabeça mas meu pai contava 
que a bicha era má; brava!
Diacho de mulher ruim; diz que isso era mesmo!
  Diz que ela, dona Marialva, estava na sala lá da casa grande, na frente do altar rigorosamente limpo,
cheio de santos, imagens que mandou trazer lá da capital da Bahia; fazia suas costumeiras orações, 
ajoelhada, manto azul marinho sobre a cabeça; a sala toda com cheiro de cêra de vela quando teve uma 
surpresa,chéchéché…
A filha chegou em casa de conversê com umas meninas, eram as filhas dos jagunços e cozinheira, 
empregadas, sei lá eu... Marcina era o nome da filha: menina nova, uns 15 anos; na companhia de outras 
três!
Marcina era um poço de candura e não era pra menos: filha única do poderoso coroné com a beata 
fervorosa, foi criada praticamente presa dentro de casa: saia apenas aos domingos para ir à missa e 
sempre com um véu lhe cobrindo o rosto; com véu frequentava o ato litúrgico e, acredite em mim, não 
era vista por ninguém da cidade lá dentro da igreja  pois sua mãe, usando da sua forte influência, 
conseguia um lugar extremamente discreto, quase escondido, na paróquia; a diaba da mulher também 
usava um véu que lhe cobria metade da face. Quando a missa terminava, saía pelos fundos rapidamente 
com a filha, ambas de véu, subiam na carroça e disparavam para a casa grande de onde a menina só 
           saíria no próximo domingo.
Pode achar que é mentira minha, mas era assim mesmo que o meu pai contava, sim sinhô: diz que a 
mulher do coroné quando engravidou fez uma promessa para Deus: se viesse uma menina iria usar 
véu e só o tiraria no altar diante do padre e do noivo já feito marido; se não casasse, partiria para um 
convento em Aracaju: seria freira e ninguém, além das irmãs religiosas, veria o seu rosto. Não me 
perguntem vocês o motivo dessa promessa desenxabida mas, como dizia minha finada mainha: a 
concha é que sabe o calor da panela! 
Quando a beata, ali ajoelhada rezando, viu chegar a filha na sala, sem véu e com três filhas de 
  sabe-se-lá-quem, não é de se espantar que foi um choque do tamanho do mundo: deu um berro 
tão alto que lá em Esplanada se ouviu.
- Vai cair um raio divino que vai fulminar essa sala! Você está em pecado… vão embora suas quengas
antes que eu mande raspar a cabeça e açoitar cada uma… eu mando botar fogo na casa dos seus 
pais com todos dentro...
Meu pai trabalhava por lá na fazenda ”d’antes-deu-nasce”; era jagunço! “nunco” nem botou os 
olhos na mocinha; ela não saia de casa; não saia mesmo! Então como aconteceu aquilo? Diz que ela,
Marcina, que com essa promessa dos diabos devia viver de calundu, da janela do seu “quarto-cativeiro”,
viu as três brincando e foi fazendo amizade dia após dia, às escondidas, em segredo, até que descuidou
e deu no que deu; e como macaco velho não mete a mão em cumbuca, como dizia minha mãe que 
Deus a guarde, as meninas foram embora corridas enquanto a Marcina foi chorando, arrasada, 
desesperada, para o quarto e a bruxa véia se escondia debaixo da mesa com medo de raio! 
O coroné chegou naquela noite sei lá de onde. Era alto o homem, troncudo, corpulento; rico mas burro; 
burro que nem porta e perigoso o patife: tudo queria resolver ou com tiro ou mandando capar o 
cabra e isso é verdade; é verdade mesmo!
- Ooooxi, que grito que tu deu muié qui os cabra ai tava tudo falando? “Abilolo” foi?  - perguntou com 
aquela vozeria grossa e a mão já segurando o cano na arma da cintura.
A megera, ainda exasperada, narrou-lhe o mais dramaticamente possível, o ocorrido ao que ele fez 
pouco caso
- Oooxi e tu precisa gritar desse jeito? Parece que é doida! Se fosse algum jagunço se metendo a 
besta com a filha do coroné eu mandava capar o cabra; mas três meninas vão fazer o quê?
- Vão fazer o que homi? Três meninas nada, homi; eram quengas que eu sei! Obra de satanás para 
destruir minha promessa sagrada homi! sorte de nossa filha ter uma mãe como eu para assegurar 
sua moral e sua alma; vou fazer alguma penitência com essa menina para pagar o ocorrido e tentar 
evitar a ira de Deus!
- É, vá, vá... eu vou sair; vou dar uma espairecida muié!
- Outra vez, Teotonio? Mas você acabou de chegar homi; não vai nem jantar?
- Não to com fome muié, perdí! E vou é na casa do padre Horácio buscar conseio!
- Então vá; se vai na casa do padre então vá mesmo que depois de hoje vamos precisar de toda 
ajuda pra ficar bem com Deus outra vez!
- E que é de Marcina?
- Está em seu quarto; desde a hora que chegou aqui em pecado na companhia de quengas se trancou;
não saiu nem para comer, nem para beber: eu acho bom! Com certeza está espiando o pecado grave 
que cometeu! - acendeu mais uma vela, jogou o lenço preto sobre o coque apertado e disse severa:
- E tu homi, trate de dar uma bronca nesses jagunços da fazenda: bem sei que esses capadócios ao 
invés de vigiar ficam dormindo, ainda mais essa hora da noite; qualquer dia entra bandido e nos leva tudo!
- oooxi muié e quem se atreve a invadir casa de coroné? Mando dar tiro e depois capo o cabra! - disse. 
E saiu pra noite; depois ela se ajoelhou e rezou agradecendo o marido santo.
Coroné Teotonio Velado: diziam que era mais burro que porta, o cabra!
    A casa da dona Dasdô Coló era ponto de encontro certo dos poetas de bar; os beberrões da cidade
iam todos para lá; os jagunços, os peões, os pastores, os vagabundos... lá dava pra jogar,também, pois tinha
uma mesa de carteado; havia um toca discos ainda de manivela que, diziam as corajosas línguas num
sussurro, Dona Dasdô ganhou do coroné; a cafetina colocava para girar discos alegres da época como 
do Trio Marayá e logo estavam todos dançando pela sala sob o som de “Bamboleio de Yayá”; às vezes 
chegava o Quincas e o Bucho, dois malandros vagabundos que animavam o lugar com música; 
cada um com sua viola, sabiam dedilhar muitos sucessos mas preferiam mesmo as canções do 
Clodoaldo Brito, Codó, e toma bebedeira e vadiagem com as pombinhas sob as luzes amareladas dos
lampiões de querosene e o espesso fumo dos cachimbos ou cigarros de palha e Sambita ao fundo.
Naquela noite na qual o coroné disse que ia sair para ver o padre; qual nada: foi direto pra casa de 
dona Dasdô! Se a dona mulher dele soubesse… haaa se ela imaginasse que o marido frequentava aquela
casa um raio ia cair, sim, e fulminar o coroné; mas dona Marialva é quem invocaria o raio divino; 
ela invocaria mesmo!!
    No bordel as pombinhas, assim que viram o coroné chegar, trataram todas de ir lhe beijar a face e enche-lo 
de mimos - além das claras ordens da dona Coló, havia, também, o fato de que todas tinham o sonho de se 
tornarem teúda e manteúda do poderoso. Mas a Cafetina tratou de tomar a frente das meninas e chamar o 
coroné de canto contando-lhe em segredo:
- Coroné, não tinha melhor noite pro sinhô vir ao meu humilde estabelecimento! Imagina o sinhô que hoje 
mesmo chegou pombinha nova! Nova novinha mesmo;verdinha, verdinha! veio de fora; “nunco” nem foi 
vista na região! Claro que o sinhô é quem merece “estréa”!
   E como a melhor espiga é para o pior porco, dizia assim minha santa mãe, diz que o coroné ficou 
muito contente e quis logo ir para o quarto encontrar a moçoila.
Chegou lá, deitou na cama; tirou as botas, o chapéu; tirou a camisa; tirou a calça; tirou a ceroula e a moça
entrou; alí, deitado sobre a cama, aquela massa bruta de homem peludo teve um principio de infarto quando
a nova pombinha entrou no quarto; assim contava meu pai e contava mesmo: o coroné, diz que quase 
colocou o coração para fora da boca, o bicho subiu até a garganta ; não saiu boca afora, é verdade, porém, 
quando foi engolir o coração, o coroné quase morre engasgado - ficou da cor de pimenta dedo-de-moça 
madura, os olhos esbugalhados, uma suadeira tremenda: 
a nova pombinha alí no quarto era Marcina, sua filha!






quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Revérboro


Deitado sobre o colchão; ainda que sozinho, está debaixo da paz e o amor que ela lhe dá: as luzes,
as estrelas; a explosão de beija flor; mel no pote do enxame de abelhas; pisar na nuvem de algodão; 
sensações essas que lhe toma por companhia além do ar Caetâneado…
— Haaa como és forte, como és doce, como és meiga — proclama o ainda jovem poeta redescobrindo 
a sua nobre vocação de poetizar e transpor o ser humano e seus sentimentos para a eternidade do 
papel; estava diante da madame realização, essa também conhecida por rei de Salém.
— Mas por que demorou tanto, nobre senhora? — o poeta já não sabia se realizar sonhos era utopia de poucos ou só 
dos outros!
Essa madame de presença sedutora e fascinante, de alta nitescência, furor, revérbero — não obstante,
de fina etiqueta, via-se logo, e modo requintado recorda-lhe, num prazeroso sussurro, alguns livros que
o poeta lera ou até relera e que sentidos fizera porém ele esquecera.
O moço se explica: ele desejou; o poeta sonhou mas seu trem não vinha. Quantos outros passaram,
outros passageiros embarcaram para viverem as suas próprias lendas; todavia, para ele só havia aquela
chuva.
“Eu desisto” pensou o poeta numa ocasião de outrora.
“ela não está atrasada como eu pensei, visto que nada atrasa quando não tem a real intenção de vir” 
E quis mesmo largar a parada e até largou; mas, tempos depois, ela voltou dizendo o que já tinha avisado:
"sempre iria voltar até ser, finalmente, escutada."
Esse mote aborreceu o moço que indagou aos seus botões se o era motejo.
Como ela queria ter sido escutada se nunca, jamais, lhe falara depois da primeira e impactante vez ainda no 
começo da sua juventude?
— Sempre lhe falei — revelou a ataviada senhora — você me ouvia mas não me escutava! 
“Eu estava no trabalho; na Europa; na faculdade — o teu olho me olhava mas não me enxergava” — complementou
a dama e explicou:
“O trem, esse tipo de trem, não atrasa e nem demora; ele chega exatamente na hora que tem que 
chegar e é essencial, também, a sua sensibilidade para decodificar os sinais para nele embarcar.”
O poeta, encantado, compreendeu, desta feita, quais eram os sinais pois mesmo sem saber ele os 
reconhecera; a linguagem universal decifrou sem aperceber-se e, posto isto, teve a certeza que o seu desejo 
“nasceu na alma do universo” parafraseando os antigos livros que lera, porém esquecera.
— Eu não sei dizer se eu sou um homem que se fez poeta ou um poeta que se fez homem; é um dilema!
“será que primeiro vem a alma ou primeiro vem a lenda?
“Será que primeiro vem o homem ou primeiro vem o poeta? 
Ou a alma da lenda que se fez homem justamente para virar poeta ou o é homem poeta cuja a alma se faz lenda?”

Mas você também jogou!

O rapaz subia a ladeira , pela calçada esquerda, na frente. A senhora subia a ladeira, pela calçada esquerda, atrás dele. Eu...